quarta-feira, 17 de maio de 2023

Conjugação de factores

 Não foi mais que uma conjugação de factores.

Tens que perceber que

quando eu não, tu sim.

Quando tu

carente,

eu disponível.


Tens que perceber que, quando eu tinha frio,

não me agasalhaste, e sabes perfeitamente que o frio é tramado 

quando queremos só amar.

A tua carência durou pouco, amor.

A minha disponibilidade já se foi também, 

juntamente com a tua carência.

Entendes?

Quando eu acordo, tu dormes,

quando eu como, jejuas,

quando eu sim,

tu não.

Não há problema nenhum, não nos desentendemos,

compreende que não nos desentendemos, amor.

É só que, quando eu no verde, tu no vermelho parado.

Tão parado, tão vermelho, caramba.


Não nos desentendemos.

Foi só a tua carência falsa a render-se à minha disponibilidade.

O teu medo, a minha vontade.

A tua cobardia, a minha coragem.

A minha disponibilidade. A tua carência.

Foi só uma conjugação de factores.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Tão calada

 Estou calada, vês? 

Como te prometi. 

Estou calada e a querer falar. 

Quanto tempo dura uma ilusão? 

Quanto tempo para ter a certeza

de que não quero isto 

Não quero isto não quero isto. 

Mandaste-me fazer coisas

que não queria

Na minha ilusão, eram por nós 

Na minha ilusão quis ter-te a todo o custo. 

Na minha versão, amor, terminada a ilusão, 

Vou perceber o que já sei, afinal:

Foi por ti, foi sempre só por ti. 

Vai, amor, vai tu fazer essas coisas que te deixam tão feliz

Eu fico calada.

Mas

Há sempre duas versões, amor 

e a minha é a melhor. 


Deixemo-nos de merdas, amor

 Deixemo-nos de merdas, amor.


Vamos acabar o que

não começámos 

na poeira da ilusão 

nos sentidos tão despertos

e na inteligência tão em falta. 


Vamos fechar o livro que 

nunca abrimos

na pressa de chegar

a lado nenhum

história sem princípio

sem fim


virar as páginas que 

não chegámos a ler

inexistentes

afinal

folhas em branco 

onde nunca nada

será escrito por nós

nem para nós. 


Perdemo-nos, amor, 

antes de nos termos encontrado

numa noite que 

dura há tantas manhãs 

como as que não viveremos 

os dois. 

 

Deixemo-nos de merdas, amor. 

Vês, ainda te chamo amor 

amor amor amor

Sempre que quiser vou 

dizer a palavra amor

com o teu nome 

na minha boca 

o gosto a saliva que não pude

não deixaste 

que eu sentisse 


Deixemo-nos de merdas,

amor. 


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Até que sejas noite

Cheguei num avião poeirento, aborrecida e cheia de sono.
Esperavas-me. Eu não te conhecia, mas reconheci-te assim que te vi.
O meu colar de contas em código morse dizia: "you had me at hello".
"You had me at the first smile", pensei, e o sono foi-se, o rosto iluminou-se e achei

achei mesmo

que, se calhar, já te conhecia há muito tempo. Ou apenas estava à tua espera:
tu esperavas-me no terminal e eu esperava-te lá onde a vista não alcança, onde as nuvens não chegam e tudo se parece com o que é.

Fomos a casa por as malas e eu achei que ficaríamos por ali (tinham-me dito que Luanda está um perigo), mas a casa era de homem solteiro - chamaste-me guerreira por aceitar isso tão bem, o rolo de cozinha no quarto de banho, o frigorífico vazio (havia chocolate, e os iogurtes fora de prazo), as roupas espalhadas pelo quarto, as camas por fazer, as máquinas por toda a sala, o cinzeiro que era um pacote de sumo de manga - de modo que resolvemos sair para almoçar, matar a fome e a saudade do que não conhecia.

É muito provável que eu não volte a ser a mesma depois desse almoço na Ilha, é muito provável que acredite em coisas antes impossíveis de imaginar, é muito provável que sofra bastante e que me saiba bem essa dor, é muito provável que, daqui para a frente, a esperança na humanidade se renove e o amor tenha mais crédito.

"Estou aqui para tomar conta de ti, não tens que te preocupar com nada". Mordeste um pedaço de mim, não sei qual, porque me ia desfazendo a cada sorriso, a cada palavra que trocávamos (disparávamos com uma vontade que se ansiava certeira, cada qual com as suas armas), eu inteira (singularity), mas aos pedaços que ia

   tentando

                apanhar

             pelo

caminho das palavras e dos olhares cheios de vontade de tanta coisa, das ondas cerebrais e dos multiversos, músicas, binaural beats, frequências

hertz

que me soavam todas lá no fundo e se colavam como a gravidade puxa tudo para si,

irremediavelmente.

A parte que mordeste ficou em Luanda e quero ver se um dia vou aí buscá-la. Em alternativa a essa possibilidade (Heisenberg percebia isso) posso tentar viver sem esse pedaço ou ainda, como num procedimento estético, por um botox etéreo no coração (o coração regenera-se por si?) e esperar que, um dia, esse dia em Luanda tenha sido um sonho em que te guardo esperando

até que sejas noite e te possa sonhar outra vez.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Sacudindo nuvens

Ela vinha cheia de perguntas. Ela era uma pergunta. Um mistério.
Perguntou-me o que eu queria. Porque estava ali, à frente dela, porque a convidara. Imaginei que ela esperava um beijo que não dei. O que pensaria ela? Que nuvens quereria alcançar?

Ela remexia nas carteiras há muito arrumadas no armário, tirava os papéis de há um, dois, três anos. Deitar fora o velho para deixar entrar o novo, pensava. Ela acreditava no Feng Shui. Olhava de vez em quando pela janela fria: nem uma nuvem.
Ouvia um "bip":  corria para o telefone, mas não era ele. Ele nunca perguntava nada, não precisava de explicações, ele ainda não tinha olhado nos olhos dela, não a tinha beijado. O que quereria ele? Não sabia que se pode alcançar nuvens?

Ela esperava mais de mim do que eu podia dar; ela queria romance, uma aventura, um beijo, um olhos nos olhos e não falar, ela queria saber o porquê de tudo. Eu, eu julgo que compreendia, eu sabia o que ela gostaria de ouvir. Eu queria dizer, juro que queria, e no entanto só me saíam da boca chorrilhos de baboseiras. Ah, eu gostava daquele jogo. E tinha medo. (ela havia de perguntar: medo de quê? E nem eu sabia). Olhava pela janela: uma nuvem, uma única nuvem riscava o céu de um lado ao outro e lembrava-me dela. Não lhe telefonei. Nem uma mensagem.

Ele estava longe e não lhe telefonou. Ela continuava num frenesim de arrumação. Decidiu que se aquilo era um jogo, ela não jogaria. Preferia perder; perderia? Ela arrumava o seu coração desarrumado (para onde vai o coração quando decidimos não jogar?), enquanto colocava em caixas de plástico novas a roupa antiga de verão. Estava frio. Em breve viriam as nuvens. Em cima da cómoda, uma única fotografia a preto e branco dela, a rir. Não, a sorrir. Por trás do sorriso um por-do-sol laranja a devorar o mar. Ah, quando navegava quase tocava nas nuvens. Teria que voltar ao mar. Qual a explicação dos pássaros?
A fotografia tinha quatro anos. Ela tinha ido ao espelho arranjar-se para sair. Já não era a mulher da foto, e no entanto, ao olhar-se, pareceu-lhe ver alguém vagamente parecido com ela. Com a ponta do tubo de creme anti-rugas, colocou delicadamente várias pintinhas por baixo dos olhos. Pensava sempre nele ao colocar pintinhas de creme. Espalhou as pintinhas com o sorriso da foto - os olhos haviam de ficar também iguais aos daquela mulher que começava a reconhecer. Foi uma vez mais à janela: cirros brancos pareciam chamá-la. Não olhou para o telefone nem foi a correr ao computador antes de sair, decidida, para a rua.

Passaram vários dias. Não voltámos a falar .Gosto deste jogo. Ela deve estar a gostar também, porque não voltou a escrever-me no computador. Nem uma mensagem no telefone. No fim de semana telefono-lhe.

Este fim de semana o céu está cheio de nuvens. Daquelas compridas, parecem vermes a lixar o meu dia, logo hoje que ia telefonar-lhe, que lhe ia perguntar se queria ir passear, aproveitar o sol. Como se sacodem nuvens? Qual a explicação dos pássaros?

Ela saiu decidida para a rua. Sabia da arte de alcançar nuvens. Sabia dos pássaros. Foi tirar fotografias.

Susana Faria

Nota: Agradeço a Helena Terra a ideia da arte de alcançar nuvens. As nuvens são dela.

domingo, 3 de novembro de 2013

O jogo

Disse-te que escrevia no meu avião de papel. Que já tinha decidido há muito, afinal, o que pensava que iria descobrir. Tinhas razão

- Parece-me que o que estava escrito no avião de papel será algo que tu decidirás e não que descobrirás.

Sei que sim, sei que já descobri. Que muito pode ser uma vida ou uma hora. Ou um minuto. Penso que decidi num minuto ao perguntares

- O que escreverias?

E no entanto, tanto tempo para descobrir. Já me disseste que, uma vez tomada uma decisão

- quando tomo uma decisão

ages rapidamente, porque não há volta a dar

- não há nada a fazer, se tem que ser...

Está frio. Detesto o Inverno. E detesto domingos sem o mar. Tu sabes. Conheces-me de algum lado, não é?
Algures há uma pista aberta à espera de um avião de papel.

Ping Pong. Adoro mantas. Gosto das pernas

quatro

debaixo das mantas. Da distância das pernas. Do leve tocar. Falar sem quase olhar. Olhar e não estares a olhar. Imagino que estejas a olhar quando eu não. E sem dizer nada, as pernas:

- chega-te um pouco mais

os cotovelos:

- estou a incomodar? desculpa, chego-me para lá?

e os cotovelos

- não, estou bem. Aliás, deixa-te estar.

O silêncio é muito confortável quando as pernas e os cotovelos falam. É um jogo. Somos ambos ardilosos. Ou melhor, algumas partes do nosso corpo são

ardilosas

O avião de papel caiu e ficou por ler. Ou ficou alguma coisa por escrever?

- O que escreverias?

Escreveria que detesto o Inverno, mas adoro as mantas e as pernas

quatro

debaixo das mantas.

Ping.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Riscos

Amor, pára com isso. Que criancice, agora deu-te para aí. Que história é essa de desatares numa sangria desenfreada a esvaziar gavetas, a revolver armários, a procurar malas que não usamos há séculos, a tirar livros cheios de pó das prateleiras, a olhares com essa cara para os CDs, olha que muitos são meus e nunca gostaste deles, a desmembrar assim a nossa casa? Nunca mais te chamei amor? Ainda agora te chamei amor, não inventes. Sempre te chamei amor. Está bem, é verdade, no outro dia, sem querer, chamei amor à Elsa, mas foi sem querer, juro, é do hábito, ainda por cima sabes muito bem que simpatizo com ela. E como vês, é como te disse, do hábito, mais uma prova, vês, de que estou sempre a chamar-te amor.
Mas que raio de ideia a tua, essa de saíres de casa assim de repente. O que é que estás a fazer na casa de banho? A casa de banho é que não senhor. Não há aí nada para levares. Maquilhagem, sim senhor, até está bem, mas também não percebo porquê, não usas nada disso há que tempos. Tens andado, por acaso agora que penso nisso, pálida como tudo e nem assim. Mas não leves mais nada, porque sabes muito bem que nunca tive tempo nem paciência para ir às compras, e agora com esta confusão toda que estás a causar, ainda menos.
E olha que ainda estou parvo. Já nos chateámos tantas vezes, sempre fizemos as pazes, sempre reconheceste a tua culpa, sempre me pediste desculpa e tantas vezes disseste que tudo farias para eu não me chatear mais contigo. É claro que me passou pela cabeça sair de casa nessas alturas, mas saí? Saí? Não, pois não? Aguentei-me contigo, afinal de contas foi contigo que eu casei, não foi? Não me olhes com essa cara, nunca te vi essa cara antes. Diferente, eu? Ai agora estamos os dois diferentes, é? Não senhora, não me parece nada que eu tenha mudado. Já tu...
Pois muito bem, sais assim. A mim parece-me mais um sinal de fraqueza tua. Forte, dizes tu? Que tiveste que ser muito forte para tomar essa decisão? Pois sim, se fugires assim é seres forte, então vou ali e já venho. Não fales assim comigo. Onde já se viu responder-me? Ainda por cima: "Vai ali mas não voltes"? Queres saber o que é ser forte? Eu fui forte, toda a vida contigo. Vê lá se não me atirei àquele anormal que se meteu contigo daquela vez. Vê lá se não carreguei os sacos das compras do elevador para a cozinha sempre que voltavas do supermercado para não te sobrecarregar. E o que eu te aturei, senhores, o que eu te aturei sem me dar na veneta de sair de casa. Se isso não é ser forte, não sei o que é. Sim, é verdade que aquela vez em que te defendi do anormal já foi há não sei quantos anos. Até pode ser verdade que já não saímos um bocadinho os dois há que tempos. Mas caramba, alguém tem que trabalhar a sério para teres a vida que tens. Até te disse que nem precisavas de trabalhar, mas insististe e eu lá condescendi, já nem te podia ouvir. Assim, quem é que tem tempo ou vontade de sair? O quê? Ainda ontem fui jantar fora, mas foi um jantar de trabalho, garanto-te. É claro, sabes perfeitamente, essas coisas às vezes são demoradas e depois temos que fazer uns fretes para agradar os chefes e enfim, sabes como é.
Quer dizer que está decidido, não é? Vais sair assim, sem mais nem menos. Mas porquê? É isso que não percebo. Que te tenhas passado com a marca de baton no meu colarinho, que te tenha dado um repente, até aceito, ninguém é perfeito, és uma dona de casa exemplar mas realmente ninguém é perfeito. Agora que saias mesmo? Amor, sei que já tens as malas à porta e o resto todo encaixotado e tudo, mas tem mesmo que ser assim? Bem, eu chamo-te amor quando eu quiser! Já chegou o elevador. Desta vez não te ajudo, que raiva. Vais sair de casa, vais-me deixar e agora quem me ouve a resmungar, quem me faz o jantar, quem me trata das papeladas, quem me diz bom dia de manhã com sumo natural de laranja, quem faz as compras, quem vai pôr música a tocar na aparelhagem, quem?
Espera. Deixa-me olhar melhor para ti. Estás tão bonita hoje. Pintaste os olhos, não foi? E puseste uma corzinha nas bochechas. Olha que se saíres mesmo arriscas-te. Juro que te arriscas. Se me deixares assim, com essa força, com essa determinação, juro que te arriscas, amor, a ser muito feliz.